TAMETSI FUTURA
SOBRE JESUS CRISTO REDENTOR
CARTA ENCÍCLICA DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE JESUS CRISTO REDENTOR
CARTA ENCÍCLICA DO PAPA LEÃO XIII
Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e outros Ordinários de lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica.
A autoridade e o poder da Igreja são tão extensos quanto o império do Filho de Deus.
1. Ainda que não seja possível olhar para o futuro com o ânimo livre de apreensão, e que as muitas e inveteradas causas de males, de ordem privada e pública, dêem nem pouco a temer, contudo, por favor divino, parece que estes últimos anos do século tenham emitido algum raio de esperança e de conforto. Porque não se deve acreditar que o cuidado renascente dos interesses da alma não confira ao bem comum o reavivamento da fé e da piedade cristã; e, aparece por sinais bastante claros que tais virtudes vão efetivamente reverdecer e retomar vigor em muitos. Também entre as lisonjas do mundo e não obstante os obstáculos que a piedade encontra à sua volta, por todo lado, eis que, a um só aceno do papa, acorrem de toda parte a Roma, aos túmulos dos santos apóstolos, grandes multidões: cidadãos e estrangeiros unidos cumprem publicamente as práticas religiosas, e confiantes na indulgência oferecida pela Igreja procuram com maior diligência os meios de salvação eterna. E, além disso, não é comovente esta piedade particularmente fervorosa, como todos podem ver, para com o Salvador do gênero humano? Sem dúvida será julgado digno dos melhores tempos cristãos este fervor, que, do nascer ao pôr-do-sol, inflama milhares de almas, em união de vontade e pensamento, a aclamar e exaltar o nome e as glórias de Jesus Cristo. E queira Deus que essas chamas irrompentes de fervor renovado da religião chamejem num vasto incêndio, e que o exemplo edificante de muitos atraia todos os outros. A volta completa da sociedade ao espírito cristão e às antigas virtudes não é talvez a necessidade maior dos tempos modernos? E existem muitos, demasiados, que mantêm os ouvidos fechados e não querem ouvir a admoestação deste despertar religioso. Mas, “se conhecessem o dom de Deus”, se pensassem que não há desgraça maior do que ter abandonado o Salvador do mundo, e ter desviado dos costumes e dos ensinamentos cristãos, com certeza se sacudiriam eles também e se apressariam em voltar sobre seus passos, para evitar uma ruína certa.
2. Pois bem, guardar e dilatar na terra o reino do Filho de Deus, e esforçar-se generosamente para levar a salvação à humanidade mediante a participação aos benefícios divinos, é tarefa da Igreja; tarefa tão grande e própria dela, à qual está ordenada principalmente toda a sua autoridade e o seu poder. Parece-nos ter dedicado até hoje, para tal fim, os maiores cuidados possíveis no árduo e difícil exercício do sumo pontificado; e, quanto a vós, veneráveis irmãos, está certo que nos acompanhem nisso, e de maneira contínua, as solicitudes do vosso zelo vigilante e ativo. Mas, nós e vós, dada a condição dos tempos, devemos esforçar-nos por fazer mais, e especialmente agora que o ano santo nos oferece a oportunidade, por difundir mais amplamente o conhecimento e o amor de Jesus Cristo, ensinando, persuadindo, exortando. Possa a nossa voz se ouvida, não tanto, digamos, pelos que costumam ouvir docilmente os ensinamentos cristãos, mas também os outros, imensamente infelizes, que conservam o nome de cristãos, mas levam uma vida sem fé, sem amor a Jesus Cristo. Nós sentimos compaixão especialmente desses; e de maneira particular quereríamos que refletissem sobre o que fazem, e o que os espera, se não se corrigirem.
3. De nenhuma forma e nunca ter conhecido Jesus Cristo é grande infelicidade, contudo não é perfídia nem ingratidão; mas repudiá-lo ou esquecê-lo depois de o ter conhecido, é um delito tão espantoso e insano que é difícil acreditar que possa acontecer num homem. Com efeito, Cristo é o princípio e a origem de todos os bens: e como não era possível resgatar o gênero humano sem a obra benéfica dele, assim não possível conservá-lo no bem, sem o concurso da sua graça: “Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). Qual seja a vida humana onde falta Jesus, “poder de Deus e sabedoria de Deus”, quais sejam os costumes, a qual termo desesperado se chegue, não no-lo mostram suficientemente com seu exemplo os povos privados da luz cristã? Relembrar um pouco a imagem que Paulo traçou deles (cf. Rm 1): cegueira de intelecto, pecados contra a natureza, formas monstruosas de superstições e de libido, para que cada um se sinta logo repleto de compaixão e ao mesmo tempo de horror.
4. As coisas que aqui lembramos são conhecidas por todos, mas não por todos meditadas e consideradas. Com efeito, não seria tão grande o número dos transviados pela soberba ou dos enrijecidos pela indolência, se se cultivasse mais universalmente a memória dos benefícios divinos e se meditasse mais vezes de onde Cristo tirou o homem e até onde o levantou. A humanidade, deserdada e exilada desde longos séculos, precipitava-se, cada dias mais, na perdição, envolvida naqueles males assustadores e noutros problemas causados pelo pecado dos progenitores, e nenhum poder humano teria podido saná-los, quando apareceu o Cristo Senhor, o libertador enviado pelo céu. O próprio Deus o tinha prometido desde o princípio do mundo, como aquele que um dia teria vencido e domado a “serpente”; por isso, estavam dirigidos para sua vinda os desejos ansiosos dos séculos que se seguiram. Os vaticínios dos profetas tinham, por longo tempo e claramente, predito que estava colocada toda esperança; e até os vários acontecimentos de um povo eleito, seus empreendimentos, as instituições, as leis, as cerimônias, os sacrifícios tinham preanunciado com precisão e clareza que nele o gênero humano teria encontrado a salvação plena e inteira, nele que era predito sacerdote e ao mesmo tempo vítima expiatória, restaurador da liberdade humana, príncipe da paz, mestre de todas as gentes, fundador de um reino que nunca acabaria. Sob esses títulos, imagens e vaticínios, variados na forma, mas concordes no objeto, era designado unicamente aquele que, pela sua excessiva caridade com a qual nos amou, um dia se teria imolado pela nossa salvação. Com efeito, quando chegou o tempo preestabelecido por Deus, o unigênito Filho de Deus, feito homem satisfez, para os homens, com seu próprio sangue e de maneira superabundante, a majestade ofendida do Pai, e assim tornou sua propriedade o gênero humano resgatado a tão alto preço. “Não a preço de coisas corruptíveis, ouro ou prata, fostes resgatados; mas com o sangue precioso de Cristo, como de cordeiro imolado e sem defeito” (1Pd 1,18-19). Por isso todas as coisas foram instauradas por Deus em Cristo. “O mistério da sua vontade, segundo o desígnio que se propusera e a ser executado na plenitude dos tempos, de recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1,9-10). Logo que Jesus destruiu o quirógrafo do decreto de nossa condenação, pregando-o na cruz, aplacou-se a ira divina; foram desatados os vínculos da escravidão antiga da humanidade confundida e errante, Deus foi reconciliado, restituída a graça, reaberto o ingresso à bem-aventurança eterna, conferido o direito e oferecidos os meios para consegui-la. Então, como despertado de um letargo longo e morta, o homem viu o lume da verdade desejada por tantos séculos e procurada em vão; de modo especial, conheceu ter nascido para destinos muito mais altos e muito mais dignos do que as coisas sensíveis, frágeis e caducas, às quais havia até então dirigido unicamente os seus pensamentos e seus desejos; e reconheceu que esse é o caráter constitutivo da vida humana, essa lei suprema, e que o fim para o qual tudo deve ser dirigido está nessa direção, porque saídos de Deus devemos, um dia, voltar a Deus. Estimulado por esse princípio e fundamento, reviveu a consciência da dignidade humana: os corações acolheram o sentimento da fraternidade comum, e, como conseqüência natural, deveres e direitos foram por um lado aperfeiçoados e por outro renovados, e se teve assim, ao mesmo tempo, um florescer de virtudes como nenhuma das filosofias antigas poderia ter imaginado. Por isso os pensamentos, as ações e os costumes tomaram outra direção; uma vez que foi difundido um amplo conhecimento do Redentor, uma vez que foi inserida nas veias íntimas da sociedade a virtude dele, vencedora do ignorância e dos vícios antigos, seguiu-se aquela reviravolta de coisas que deu vida à civilização cristã e transformou completamente a face da terra.
5. Na lembrança disso, veneráveis irmãos, sente-se no ânimo uma consolação imensa e ao mesmo tempo um vivo sentido de ter que agradecer com toda a alma, naquilo que nos é possível, ao Salvador divino.
7. Todos os que se põem fora do reto caminho vagueiam às cegas e afastam-se da meta desejada. Da mesma forma, ao se rejeitar a luz pura e sincera do verdadeiro, sucedem erros perniciosos, as trevas inevitavelmente obscurecerão a mente, e o coração entristece. Com efeito, que esperança de saúde pode haver para quem abandona o princípio e a fonte da vida? Ora, o caminho, a verdade e a vida é somente o Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6); de tal forma que, abandonado o Cristo, faltarão aqueles três princípios necessários para toda salvação.
8. Talvez seja necessário demonstrar o que experiência continuamente prova, e que cada um, até quando se encontra na abundância de bens terrenos, sente profundamente dentro de si, que não há nada fora de Deus que possa absolutamente e totalmente satisfazer o desejo humano? O fim do homem é Deus e todo este tempo em que se passa na terra não é senão uma espécie de peregrinação. Mas Cristo é o nosso “caminho”, porque nesta viagem mortal tão difícil e cheia de perigos, não podemos, de nenhuma forma, chegar ao bem supremo, Deus, sem a obra e a guia de Cristo. “Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo 14,6). O que significa isso? Significa, principalmente e antes de tudo, que não se pode ir ao Pai a não ser por meio da graça de Jesus, a qual contudo permaneceria infrutuosa no homem, se se descuidasse da observância dos preceitos e das suas leis. Como era conveniente, Jesus Cristo, acabada a redenção, pôs como guarda e tutela do gênero humano a sua lei, para que, governados por ela, os homens pudessem converter-se de uma vida não boa e dirigir-se com segurança para o seu Deus. “Ide e fazei que todas as nações se tornem discípulos... ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei” (Mt 28,19-20). “Observai os meus mandamentos” (Jo 14,5). Disso se deve deduzir que, na profissão cristã, o fato fundamental e necessário é submeter-se com docilidade aos preceitos de Jesus Cristo, e a ele, como senhor e rei supremo, submeter, devotamente e em tudo, a vontade. Coisa grande esta e que exige muitas vezes sacrifícios não leves, esforço duro e constância. Pois, se bem que a natureza humana tenha sido sanada pela obra benéfica do Redentor, permanece contudo em cada um de nós alguma doença, uma enfermidade, uma tendência ao mal. Cupidezes diversas arrebatam o homem ora numa direção ora noutra, e os atrativos das coisas sensíveis facilmente dobram a vontade, e nos levam a fazer aquilo de que se gosta, e não aquilo que Cristo manda. Mas é indispensável resistir e combater com todas as forças as paixões, “em obséquio a Cristo” (2Cor 10,5); as paixões, se não obedecem à razão, tomam a primazia, e, desviando todo o homem da submissão a Cristo, torna-o seu escravo. “Os homens corrompidos de mente e na fé não se podem libertar da escravidão; e até são escravos de três paixões: a volúpia, a soberba, o pôr-se em exposição” (S. Augustinus, De Vera religione, 37).
E nessa luta é preciso que cada um esteja disposto a aceitar de boa mente sofrimentos e fadigas por amor de Cristo. É difícil repelir coisas tão aliciantes e atraentes; é duro e penoso desprezar o que é considerado bem do corpo e riqueza, e fazer isso por vontade e ordem de Cristo Senhor; mas, paciência e fortaleza são absolutamente necessárias ao cristão que queira viver em conformidade com a sua profissão. Esquecemos talvez de que corpo e de que cabeça somos membros? Aquele que nos manda renegar a nós mesmos é aquele mesmo que, tendo-se proposto a alegria, suportou a cruz. E daquela disposição de ânimo, a que nos referimos, depende a dignidade mesma da natureza humana. Pois mandar a si mesmo, fazer com que a parte inferior de nós obedeça à superior, não é covardia de um ânimo fraco, mas antes, como também os sábios da antiguidade não poucas vezes entenderam, é virtude generosa, admiravelmente conforme à razão e, em sumo grau, digna do homem.
9. De resto, suportar e padecer muito é condição humana. O homem não pode destruir a vontade do seu Criador divino, o qual quis que permanecessem para sempre as conseqüências da culpa original; da mesma forma não se pode construir uma vida completamente livre de toda dor e cheia de toda felicidade. É portando razoável não esperar aqui o fim da dor, mas antes fortalecer o ânimo para suportar a dor, a qual exatamente nos ensina a esperar, com a certeza de ter os bens supremos. O Cristo, com efeito, não prometeu a bem-aventurança eterna do céu às riquezas ou à vida cômoda, nem às honras e ao poder, mas sim à paciência e às lágrimas, ao amor da justiça e à pureza do coração.
9. De resto, suportar e padecer muito é condição humana. O homem não pode destruir a vontade do seu Criador divino, o qual quis que permanecessem para sempre as conseqüências da culpa original; da mesma forma não se pode construir uma vida completamente livre de toda dor e cheia de toda felicidade. É portando razoável não esperar aqui o fim da dor, mas antes fortalecer o ânimo para suportar a dor, a qual exatamente nos ensina a esperar, com a certeza de ter os bens supremos. O Cristo, com efeito, não prometeu a bem-aventurança eterna do céu às riquezas ou à vida cômoda, nem às honras e ao poder, mas sim à paciência e às lágrimas, ao amor da justiça e à pureza do coração.
10. Daqui facilmente aparece o que se deve esperar do erro e da soberba daqueles que, desprezada a soberania do Redentor, colocam o homem acima de todas as coisas, e querem o reino absoluto e universal da natureza humana; também se na prática não possam conseguir este reino, e até nem saibam definir bem no que ele consiste. O reino de Jesus Cristo toma forma e consistência da caridade divina: o amor santo e ordenado é o fundamento e compêndio dele. Daqui necessariamente derivam os seguintes princípios: é preciso cumprir bem o próprio dever, não se deve cometer nenhuma injustiça ao próximo, é preciso estimar as coisas terrenas como inferiores às celestes, é preciso amar a Deus sobre todas as coisas. Bem diferente é aquele domínio do homem, que abertamente recusa Cristo ou que descuida conhecê-lo, funda-se sobre o egoísmo, que não conhece a caridade, nem o espírito de sacrifício. Segundo o ensinamento de Jesus é também lícito ao homem mandar, mas o deve fazer somente naquela condição possível, isto é, antes de tudo deve ele servir a Deus, e deve tomar da lei de Deus as normas e o guia da própria vida.
11. Quando dizemos lei de Cristo não queremos somente entender os preceitos naturais, ou somente os que os antigos receberam de Deus, preceitos que Jesus Cristo completou ao declará-los, interpretá-los e sancioná-los, mas entendemos também todo o resto da sua doutrina, e todas as coisas por ele instituídas expressamente. Entre elas a principal é, sem dúvida, a Igreja: com efeito, o que há entre aquilo que Cristo instituiu, que ela não abrace, que não contenha plenamente? Com certeza ele quis que, mediante o ministério da Igreja por ele mesmo tão admiravelmente constituída, fosse perpetuada a missão que o Pai havia confiado a ele. E tendo-a feita depositária de todos os meios de salvação para o homem, estabeleceu solenemente que os homens prestassem obediência a ela com a si próprio, que se deixassem sempre conduzir por ela como guia seguro. “Quem vos escuta, é a mim que escuta, quem vos despreza é a mim que despreza” (Lc 10,16). Portanto só na Igreja devemos procurar a lei de Cristo; com efeito, caminho do homem é Cristo, e igualmente o é a Igreja: ele de per si e pela própria natureza, ela pelo ofício que lhe foi confiado e pela comunicação dos poderes. Portanto, quem presumir chegar à salvação fora da Igreja anda por um caminho errado, e se esforça inutilmente.
12. E o destino dos Estados não é muito diferente daquele dos homens: também esses correm para a sua perdição se se afastam do “caminho”. O Filho de Deus, criador e redentor da natureza humana, é rei e senhor de toda a terra e tem o poder supremo sobre os homens, quer tomados singularmente, quer reunidos em sociedade civil. “Deu-lhe poder, honra e reino; e todos os povos, tribos e línguas o servirão” (Dn 7,14). “Eu fui constituído por ele rei. Eu te darei em herança as gentes, em teu domínio os últimos confins do mundo” (Sl 2,6.8). Portanto, também na convivência humana e da sociedade civil deve imperar a lei de Cristo, e de forma que não somente na vida privada, mas também na pública, ela seja guia e mestra. Ora, como este é o decreto de Deus, e ninguém pode transgredi-lo impunemente, cuida-se mal da coisa pública se as instituições cristãs não são tidas na devida conta. Afastando-se de Jesus, a razão humana fica abandonada a si mesma, privada da ajuda mais válida e da luz mais preciosa; e então com toda facilidade perde-se de vista o próprio fim estabelecido por Deus ao instituir o consórcio civil – e este fim consiste formalmente em ajudar os cidadãos a conseguir o bem-estar natural; mas de forma que se harmonize completamente com a consecução daquele bem sumo, perfeitíssimo e sempiterno, que supera todas as ordens da natureza. Perder de vista essas idéias leva para fora do caminho tanto os regedores como os súditos, por falta de um endereço e de um ponto de apoio seguros.
13. Se desviar do reto caminho é causa lastimável de desventuras, da mesma forma o é o abandono da verdade. Ora a verdade primeira, absoluta e essencial é Cristo, porque é verbo de Deus, consubstancial e coeterno ao Pai, uma única coisa com o Pai. “Eu sou o caminho e a verdade”. Portanto, se se procura a verdade, a razão humana obedeça primeiramente a Jesus Cristo e descanse segura no seu magistério, pois é a própria verdade que fala por meio da boca de Cristo.
14. São inumeráveis as matérias nas quais o engenho humano pode livremente mover-se para investigar e contemplar como num campo muito fértil e próprio; e isso não somente é consentido mas é querido expressamente pela natureza. Porém é coisa ilícita e contrária à natureza não querer manter a mente dentro dos seus confins, e, abandonada a necessária moderação, desprezar a autoridade de Cristo que ensina. Aquela doutrina da qual depende a salvação de todos nós, quase toda tirada de Deus e das coisas que especialmente dizem respeito à divindade: ela não é produto da sabedoria humana, mas o Filho de Deus a obteve e recebeu toda do seu próprio Pai: “As palavras eu me deste eu as dei a eles” (Jo 17,8). E isso, necessariamente, abrange muitas coisas, que não repugnam à razão o que não se pode dar de nenhuma forma, mas das quais não podemos atingir a profundidade com a nossa razão, assim como não podemos com ela compreender a essência divina. Mas se há tantas coisas obscuras e envolvidas no arcano pela natureza, que não podem ser explicadas pelo homem, das quais porém ninguém, são de mente, ousaria duvidar, com certeza é abuso estranho de liberdade negar a existência de outras coisas muito superiores à natureza, somente porque não é possível compreender a sua essência íntima. Recusar os dogmas é equivalente a rejeitar completamente toda a religião cristã. Ao invés, é obrigatório dobrar a mente com humildade e sem reservas “em obséquio a Cristo”, até o ponto que ela esteja submetida ao seu império divino: “Tornamos cativo todo pensamento para levá-lo a obedecer a Cristo” (2Cor 10,5). Esse é o obséquio que Cristo exige; e o exige com pleno direito; com efeito, ele é Deus e, por isso, tem poder pleno sobre a vontade do homem, como também sobre a sua inteligência. Mas submetendo a própria inteligência a Cristo senhor, o homem não age servilmente, mas, pelo contrário, de maneira convenientíssima, quer à razão, que à sua dignidade original. Com efeito, não submete a própria vontade a um homem qualquer, mas ao seu criador, senhor de todas as coisas, Deus, ao qual está submetido por lei de natureza, e não se prende às opiniões de um mestre humano, mas à verdade eterna e imutável. Dessa forma ele alcança o bem natural do intelecto e consegue ao mesmo tempo a liberdade. Com efeito, a verdade, que procede do magistério de Cristo, põe abertamente às claras a essência e o valor de todas as coisas, motivo pelo qual, se o homem prestar ouvidos à verdade conhecida, não terá que estar submetido às coisas, mas as coisas estarão submetidas a ele, nem a sua razão estará sujeita à paixão, mas a paixão será regulada pela razão, e o homem, liberto da maior escravidão do erro e do pecado, será confirmado na mais preciosa liberdade: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres” (Jo 8,32).
15. Está claro, portanto, que os que recusarem o império de Cristo, com vontade pertinaz rebelam-se a Deus. Tendo se emancipado do poder divino, nem por isso serão mais independentes, porque cairão sob algum outro poder humano, elegendo para si, como costuma acontecer, algum seu semelhante, que escutarão, ao qual obedecerão e seguirão como seu mestre. Além disso, esses, impedindo a mente de comunicar-se com as coisas divinas, restringem o campo do saber, e vêm a se encontrar menos preparados para progredir nas ciências puramente naturais, porque na natureza há também muitas coisas para cuja compreensão e clarificação muito ajuda a luz da doutrina revelada. E não raramente, como castigo da soberba deles, Deus permite que não saibam distinguir o verdadeiro, de forma que são punidos no próprio campo do seu pecado. Por ambos os motivos, muitas vezes se vêem homens de grande engenho e de erudição não comum perderem-se, até no próprio estudo da natureza, em absurdos nunca ouvidos, que não têm precedentes.
16. Seja, portanto, claro que quem faz profissão de vida cristã deve submeter total e plenamente sua inteligência à autoridade divina e se nessa submissão da razão à autoridade mortifica-se e reprime-se aquele amor próprio que é tão forte em nós, exatamente por isso, devemos deduzir a necessidade absoluta para todo cristão de mortificar não somente a vontade, mas também o intelecto. E quereríamos que se lembrassem disso aqueles que se propõem um cristianismo segundo seus gostos, governado na ordem intelectiva e na ordem prática, por leis mais suaves e mais indulgentes com a natureza humana, de forma que não lhe sejam impostas nenhuma ou poucas mortificações. Eles não entendem bastante a exigência da fé e dos preceitos cristãos: não vêem como de todo lado se nos apresenta a “cruz”, exemplo de vida e estandarte perpétuo de todos aqueles que querem ser, não somente de nome, mas na realidade e com obras, seguidores de Cristo.
17. Somente Deus é a vida. Todos os outros seres são participantes da vida, mas não são a “vida”. Porém, desde toda a eternidade, e por sua própria natureza, Cristo é a vida, da mesma forma que é verdade, porque é Deus de Deus. Dele, como de primeiro e augustíssimo princípio, fluiu no mundo toda vida e fluirá perpetuamente. Tudo o que existe, é por ele que existe; tudo o que vive, é por ele que vive, porque “todas as coisas” por meio do verbo “foram feitas, e sem ele nada foi feito do que foi feito”.
18. Isso quanto à vida natural. Mas acima lembramos uma vida muito melhor, infinitamente mais preciosa, gerada pela obra benéfica do próprio Cristo, isto é, a “vida da graça”, cujo fim beatíssimo é a “vida da glória”, para a qual devem ser dirigidos pensamentos e ações. Nisso consiste toda a força da doutrina e das leis cristãs, que “mortos ao pecado, vivamos para a justiça”, isto é, para a virtude e a santidade; e nisso consiste a vida moral dos homens, com a esperança segura da bem-aventurança eterna. Mas a justiça, verdadeira e propriamente e de maneira eficaz para a salvação, não se alimenta de nenhuma outra coisa a não ser da fé cristã: “O justo vive de fé” (Gl 3,11). “Sem a fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11,6). Eis porque Jesus Cristo autor, pai e sustento da fé, é também aquele que conserva e alimenta em nós a vida moral, e o faz sobretudo por meio do ministério da Igreja. Com efeito, a ela, com conselho benigno e providente, ensinou e confiou a administração daqueles meios que geram a vida, de que falamos, e gerada, a conservam e renovam, quando se acabar. Por isso, ao separar a moral da fé divina, é destruída na raiz a força que gera e conserva as virtudes salutares. Aqueles que querem formar os costumes na honestidade só por meio de ditames da razão, despojam o homem da sua máxima dignidade e, com sua grande perda, da vida sobrenatural o fazem regredir para a vida puramente natural. Com a reta razão o homem pôde conhecer e praticar muitos preceitos naturais, mas também, ainda que os conhecesse todos e os praticasse todos, sem nenhuma imperfeição, durante toda a vida, coisa de resto impossível sem a graça do Redentor, em vão esperaria salvar-se eternamente, se não tem a fé. “Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e queimam” (Jo 15,6). “O que não crer será condenado” (Mc 16,16). Ademais, temos demasiadas provas debaixo dos olhares de qual seja o valor e quais frutos produza essa honestidade descuidada da fé. Como é que não obstante o grande empenho de estabelecer e aumentar a prosperidade pública, os Estados sofrem, cada dia mais, em pontos de importância capital e aparecem como enfermos? Afirma-se, é verdade, que a sociedade civil basta para si mesma; que é capaz de florescer egregiamente sem o concurso das instituições cristãs, e de conseguir o próprio fim com suas próprias forças. Portanto, nas ordens administrativas se quer laicizar tudo; na disciplina civil e na vida pública dos povos vêem-se desaparecer, pouco a pouco, os vestígios da religião dos pais. Mas não se reflete bastante para onde levam esses princípios, pois, afastada a idéia da soberania de Deus juiz e retribuidor do bem e do mal, é inevitável que as leis percam a sua mais válida autoridade e que venha a faltar a justiça; no entanto esses são os dois liames mais necessários e firmes da sociedade civil. Da mesma forma, extinta a esperança e a espera dos bens eternos, se acende necessariamente nos corações a sede irrefreável dos bens terrenos, e cada um procurará, com todas as suas forças, açambarcar quanto mais puder deles. Portanto, desafios, invejas, ódios; depois propósitos ruins: aspiração à abolição de todo poder, ameaça em todo lugar ruínas loucas. Não tranqüilidade fora, não segurança dentro, subvertida por delitos a convivência civil.
19. Em tão grande contraste de paixões e entre tão graves perigos, não há meio-termo: ou esperar as piores catástrofes, ou procurar sem demora um remédio válido. Reprimir os delinqüentes, enobrecer o costume das plebes, e prevenir de toda forma os males por meio de leis sábias, é coisa boa e necessária; mas não consiste somente nisso. É preciso procurar mais no alto o saneamento dos povos: é conveniente pedir socorro a uma força superior àquela humana, a qual toque diretamente as almas e, regenerando-as para a consciência do dever, as torne melhores; queremos dizer aquela mesma força que trouxe de volta para a salvação a família humana de condições bem mais desesperadas. Fazei com que no consórcio civil refloresça o espírito cristão, dai-lhes condições de se desenvolver livre de obstáculos, e o consórcio civil sairá restaurado. Cessarão as lutas de classe, e o respeito recíproco será a garantia para cada um dos próprios direitos. Se escutam o Cristo, observarão também o seu dever, quer os ricos, quer os pobres: aqueles entenderão que devem procurar a saúde na justiça e na caridade, estes na temperança e na moderação. O ordenamento da sociedade doméstica será perfeito, quando for governada pelo temor salutar de Deus, seu legislador supremo. E pelo mesmo motivo falarão alto ao coração dos povos aqueles preceitos morais, inculcados também pela natureza: respeitar os poderes legítimos, obedecer às leis, não urdir sedições nem participar de conspirações sectárias. E assim, onde reina soberana a lei de Cristo, permanece em vigor e inalterada a ordem estabelecida pela divina providência, de onde se originam incolumidade e bem-estar. É este, portanto, o grito da salvação comum: volte a universal comunidade civil, e também em particular, para onde teria sido conveniente nunca se afastar, isto é, daquele, que é caminho, verdade e vida. É preciso para integrar no seu domínio o Cristo senhor, e fazer com que aquela vida, da qual ele é fonte, volte a fluir para irrigar copiosamente e revigorar todas as partes do organismo social, o argumento das leis, as instituições nacionais, as universidades, a família e o direito matrimonial, as cortes dos grandes, as oficinas dos operários. E tenha-se bem na mente que disso depende grandemente aquela civilização das nações que se procura com tanto ardor, pois ela alimenta-se e amadurece não tanto com aquelas coisas que limitam à matéria, como as comodidades da vida e a abundância dos bens terrenos, mas antes com aquelas que são próprias da alma, os costumes louváveis e o culto da virtude.
20. Muitos estão longe de Jesus Cristo por ignorância, mais do que por má vontade; com efeito, são muitos os que se dedicam a estudar o homem e o mundo, mas pouquíssimos são os que procuram conhecer o Filho de Deus. Antes de mais nada, portanto, não se deve vencer a ignorância com o conhecimento, de forma que não se repudie nem se despreze alguém que não se conhece. Esconjuramos todos os cristãos, em qualquer lugar se encontrem, a fazer o possível para conhecer o seu Redentor, qual ele verdadeiramente é. Quando terão fixado nele com sinceridade e sem preconceitos o olhar, logo verão claro, que não pode haver nada de mais salutar do que a sua lei, nem de mais divino do que a sua doutrina. Para atingir essa finalidade será particularmente eficaz a autoridade e a vossa obra, veneráveis irmãos, assim como o zelo e a solicitude de todo o clero. Mantende como parte essencial do vosso ofício, esculpir nas mentes dos povos o verdadeiro conceito, a imagem nítida de Jesus Cristo, e fazer conhecer bem a sua caridade, os seus benefícios, os seus ensinamentos, com os escritos, com a palavra, nas escolas primárias e nas superiores, na pregação, em todo lugar em que se apresente a ocasião. Muito se falou às multidões sobre aqueles que são definidos “os direitos do homem”; fale-se-lhes também dos direitos de Deus. Que este seja o tempo propício para fazer isso, é prova o amor do bem que acordou em muitos, como dizemos, e é especialmente esta piedade para com o Redentor, que se manifestou de tantas formas: piedade que, como auspício de tempos melhores estamos para entregar em herança, se Deus quiser, ao século que está para nascer. Mas como se trata de coisas que podemos esperar somente pela graça divina, unidos no zelo comum e na oração, suplicamos a Deus onipotente queira dobrar-se à misericórdia. Não permita que pereçam aqueles que ele próprio libertou, com a efusão de seu sangue. Olhe propício para este século que, é verdade, muito pecou, mas também muito sofreu em expiação dos seus erros; e, abraçando amorosamente os homens de todas as nações e de toda raça, lembre-se da sua palavra: “E eu, quando for elevado da terra, atrairei tudo a mim” (Jo 12,32)Como auspício dos favores divinos, e como expressão da nossa benevolência paterna, concedemos, de todo o coração no Senhor, a bênção apostólica, a vós, veneráveis irmãos, ao clero e ao vosso povo.
Roma, junto a São Pedro, 1º de novembro de 1.900
LEÃO PP. XIII
13. Se desviar do reto caminho é causa lastimável de desventuras, da mesma forma o é o abandono da verdade. Ora a verdade primeira, absoluta e essencial é Cristo, porque é verbo de Deus, consubstancial e coeterno ao Pai, uma única coisa com o Pai. “Eu sou o caminho e a verdade”. Portanto, se se procura a verdade, a razão humana obedeça primeiramente a Jesus Cristo e descanse segura no seu magistério, pois é a própria verdade que fala por meio da boca de Cristo.
14. São inumeráveis as matérias nas quais o engenho humano pode livremente mover-se para investigar e contemplar como num campo muito fértil e próprio; e isso não somente é consentido mas é querido expressamente pela natureza. Porém é coisa ilícita e contrária à natureza não querer manter a mente dentro dos seus confins, e, abandonada a necessária moderação, desprezar a autoridade de Cristo que ensina. Aquela doutrina da qual depende a salvação de todos nós, quase toda tirada de Deus e das coisas que especialmente dizem respeito à divindade: ela não é produto da sabedoria humana, mas o Filho de Deus a obteve e recebeu toda do seu próprio Pai: “As palavras eu me deste eu as dei a eles” (Jo 17,8). E isso, necessariamente, abrange muitas coisas, que não repugnam à razão o que não se pode dar de nenhuma forma, mas das quais não podemos atingir a profundidade com a nossa razão, assim como não podemos com ela compreender a essência divina. Mas se há tantas coisas obscuras e envolvidas no arcano pela natureza, que não podem ser explicadas pelo homem, das quais porém ninguém, são de mente, ousaria duvidar, com certeza é abuso estranho de liberdade negar a existência de outras coisas muito superiores à natureza, somente porque não é possível compreender a sua essência íntima. Recusar os dogmas é equivalente a rejeitar completamente toda a religião cristã. Ao invés, é obrigatório dobrar a mente com humildade e sem reservas “em obséquio a Cristo”, até o ponto que ela esteja submetida ao seu império divino: “Tornamos cativo todo pensamento para levá-lo a obedecer a Cristo” (2Cor 10,5). Esse é o obséquio que Cristo exige; e o exige com pleno direito; com efeito, ele é Deus e, por isso, tem poder pleno sobre a vontade do homem, como também sobre a sua inteligência. Mas submetendo a própria inteligência a Cristo senhor, o homem não age servilmente, mas, pelo contrário, de maneira convenientíssima, quer à razão, que à sua dignidade original. Com efeito, não submete a própria vontade a um homem qualquer, mas ao seu criador, senhor de todas as coisas, Deus, ao qual está submetido por lei de natureza, e não se prende às opiniões de um mestre humano, mas à verdade eterna e imutável. Dessa forma ele alcança o bem natural do intelecto e consegue ao mesmo tempo a liberdade. Com efeito, a verdade, que procede do magistério de Cristo, põe abertamente às claras a essência e o valor de todas as coisas, motivo pelo qual, se o homem prestar ouvidos à verdade conhecida, não terá que estar submetido às coisas, mas as coisas estarão submetidas a ele, nem a sua razão estará sujeita à paixão, mas a paixão será regulada pela razão, e o homem, liberto da maior escravidão do erro e do pecado, será confirmado na mais preciosa liberdade: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres” (Jo 8,32).
15. Está claro, portanto, que os que recusarem o império de Cristo, com vontade pertinaz rebelam-se a Deus. Tendo se emancipado do poder divino, nem por isso serão mais independentes, porque cairão sob algum outro poder humano, elegendo para si, como costuma acontecer, algum seu semelhante, que escutarão, ao qual obedecerão e seguirão como seu mestre. Além disso, esses, impedindo a mente de comunicar-se com as coisas divinas, restringem o campo do saber, e vêm a se encontrar menos preparados para progredir nas ciências puramente naturais, porque na natureza há também muitas coisas para cuja compreensão e clarificação muito ajuda a luz da doutrina revelada. E não raramente, como castigo da soberba deles, Deus permite que não saibam distinguir o verdadeiro, de forma que são punidos no próprio campo do seu pecado. Por ambos os motivos, muitas vezes se vêem homens de grande engenho e de erudição não comum perderem-se, até no próprio estudo da natureza, em absurdos nunca ouvidos, que não têm precedentes.
16. Seja, portanto, claro que quem faz profissão de vida cristã deve submeter total e plenamente sua inteligência à autoridade divina e se nessa submissão da razão à autoridade mortifica-se e reprime-se aquele amor próprio que é tão forte em nós, exatamente por isso, devemos deduzir a necessidade absoluta para todo cristão de mortificar não somente a vontade, mas também o intelecto. E quereríamos que se lembrassem disso aqueles que se propõem um cristianismo segundo seus gostos, governado na ordem intelectiva e na ordem prática, por leis mais suaves e mais indulgentes com a natureza humana, de forma que não lhe sejam impostas nenhuma ou poucas mortificações. Eles não entendem bastante a exigência da fé e dos preceitos cristãos: não vêem como de todo lado se nos apresenta a “cruz”, exemplo de vida e estandarte perpétuo de todos aqueles que querem ser, não somente de nome, mas na realidade e com obras, seguidores de Cristo.
17. Somente Deus é a vida. Todos os outros seres são participantes da vida, mas não são a “vida”. Porém, desde toda a eternidade, e por sua própria natureza, Cristo é a vida, da mesma forma que é verdade, porque é Deus de Deus. Dele, como de primeiro e augustíssimo princípio, fluiu no mundo toda vida e fluirá perpetuamente. Tudo o que existe, é por ele que existe; tudo o que vive, é por ele que vive, porque “todas as coisas” por meio do verbo “foram feitas, e sem ele nada foi feito do que foi feito”.
18. Isso quanto à vida natural. Mas acima lembramos uma vida muito melhor, infinitamente mais preciosa, gerada pela obra benéfica do próprio Cristo, isto é, a “vida da graça”, cujo fim beatíssimo é a “vida da glória”, para a qual devem ser dirigidos pensamentos e ações. Nisso consiste toda a força da doutrina e das leis cristãs, que “mortos ao pecado, vivamos para a justiça”, isto é, para a virtude e a santidade; e nisso consiste a vida moral dos homens, com a esperança segura da bem-aventurança eterna. Mas a justiça, verdadeira e propriamente e de maneira eficaz para a salvação, não se alimenta de nenhuma outra coisa a não ser da fé cristã: “O justo vive de fé” (Gl 3,11). “Sem a fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11,6). Eis porque Jesus Cristo autor, pai e sustento da fé, é também aquele que conserva e alimenta em nós a vida moral, e o faz sobretudo por meio do ministério da Igreja. Com efeito, a ela, com conselho benigno e providente, ensinou e confiou a administração daqueles meios que geram a vida, de que falamos, e gerada, a conservam e renovam, quando se acabar. Por isso, ao separar a moral da fé divina, é destruída na raiz a força que gera e conserva as virtudes salutares. Aqueles que querem formar os costumes na honestidade só por meio de ditames da razão, despojam o homem da sua máxima dignidade e, com sua grande perda, da vida sobrenatural o fazem regredir para a vida puramente natural. Com a reta razão o homem pôde conhecer e praticar muitos preceitos naturais, mas também, ainda que os conhecesse todos e os praticasse todos, sem nenhuma imperfeição, durante toda a vida, coisa de resto impossível sem a graça do Redentor, em vão esperaria salvar-se eternamente, se não tem a fé. “Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e queimam” (Jo 15,6). “O que não crer será condenado” (Mc 16,16). Ademais, temos demasiadas provas debaixo dos olhares de qual seja o valor e quais frutos produza essa honestidade descuidada da fé. Como é que não obstante o grande empenho de estabelecer e aumentar a prosperidade pública, os Estados sofrem, cada dia mais, em pontos de importância capital e aparecem como enfermos? Afirma-se, é verdade, que a sociedade civil basta para si mesma; que é capaz de florescer egregiamente sem o concurso das instituições cristãs, e de conseguir o próprio fim com suas próprias forças. Portanto, nas ordens administrativas se quer laicizar tudo; na disciplina civil e na vida pública dos povos vêem-se desaparecer, pouco a pouco, os vestígios da religião dos pais. Mas não se reflete bastante para onde levam esses princípios, pois, afastada a idéia da soberania de Deus juiz e retribuidor do bem e do mal, é inevitável que as leis percam a sua mais válida autoridade e que venha a faltar a justiça; no entanto esses são os dois liames mais necessários e firmes da sociedade civil. Da mesma forma, extinta a esperança e a espera dos bens eternos, se acende necessariamente nos corações a sede irrefreável dos bens terrenos, e cada um procurará, com todas as suas forças, açambarcar quanto mais puder deles. Portanto, desafios, invejas, ódios; depois propósitos ruins: aspiração à abolição de todo poder, ameaça em todo lugar ruínas loucas. Não tranqüilidade fora, não segurança dentro, subvertida por delitos a convivência civil.
19. Em tão grande contraste de paixões e entre tão graves perigos, não há meio-termo: ou esperar as piores catástrofes, ou procurar sem demora um remédio válido. Reprimir os delinqüentes, enobrecer o costume das plebes, e prevenir de toda forma os males por meio de leis sábias, é coisa boa e necessária; mas não consiste somente nisso. É preciso procurar mais no alto o saneamento dos povos: é conveniente pedir socorro a uma força superior àquela humana, a qual toque diretamente as almas e, regenerando-as para a consciência do dever, as torne melhores; queremos dizer aquela mesma força que trouxe de volta para a salvação a família humana de condições bem mais desesperadas. Fazei com que no consórcio civil refloresça o espírito cristão, dai-lhes condições de se desenvolver livre de obstáculos, e o consórcio civil sairá restaurado. Cessarão as lutas de classe, e o respeito recíproco será a garantia para cada um dos próprios direitos. Se escutam o Cristo, observarão também o seu dever, quer os ricos, quer os pobres: aqueles entenderão que devem procurar a saúde na justiça e na caridade, estes na temperança e na moderação. O ordenamento da sociedade doméstica será perfeito, quando for governada pelo temor salutar de Deus, seu legislador supremo. E pelo mesmo motivo falarão alto ao coração dos povos aqueles preceitos morais, inculcados também pela natureza: respeitar os poderes legítimos, obedecer às leis, não urdir sedições nem participar de conspirações sectárias. E assim, onde reina soberana a lei de Cristo, permanece em vigor e inalterada a ordem estabelecida pela divina providência, de onde se originam incolumidade e bem-estar. É este, portanto, o grito da salvação comum: volte a universal comunidade civil, e também em particular, para onde teria sido conveniente nunca se afastar, isto é, daquele, que é caminho, verdade e vida. É preciso para integrar no seu domínio o Cristo senhor, e fazer com que aquela vida, da qual ele é fonte, volte a fluir para irrigar copiosamente e revigorar todas as partes do organismo social, o argumento das leis, as instituições nacionais, as universidades, a família e o direito matrimonial, as cortes dos grandes, as oficinas dos operários. E tenha-se bem na mente que disso depende grandemente aquela civilização das nações que se procura com tanto ardor, pois ela alimenta-se e amadurece não tanto com aquelas coisas que limitam à matéria, como as comodidades da vida e a abundância dos bens terrenos, mas antes com aquelas que são próprias da alma, os costumes louváveis e o culto da virtude.
20. Muitos estão longe de Jesus Cristo por ignorância, mais do que por má vontade; com efeito, são muitos os que se dedicam a estudar o homem e o mundo, mas pouquíssimos são os que procuram conhecer o Filho de Deus. Antes de mais nada, portanto, não se deve vencer a ignorância com o conhecimento, de forma que não se repudie nem se despreze alguém que não se conhece. Esconjuramos todos os cristãos, em qualquer lugar se encontrem, a fazer o possível para conhecer o seu Redentor, qual ele verdadeiramente é. Quando terão fixado nele com sinceridade e sem preconceitos o olhar, logo verão claro, que não pode haver nada de mais salutar do que a sua lei, nem de mais divino do que a sua doutrina. Para atingir essa finalidade será particularmente eficaz a autoridade e a vossa obra, veneráveis irmãos, assim como o zelo e a solicitude de todo o clero. Mantende como parte essencial do vosso ofício, esculpir nas mentes dos povos o verdadeiro conceito, a imagem nítida de Jesus Cristo, e fazer conhecer bem a sua caridade, os seus benefícios, os seus ensinamentos, com os escritos, com a palavra, nas escolas primárias e nas superiores, na pregação, em todo lugar em que se apresente a ocasião. Muito se falou às multidões sobre aqueles que são definidos “os direitos do homem”; fale-se-lhes também dos direitos de Deus. Que este seja o tempo propício para fazer isso, é prova o amor do bem que acordou em muitos, como dizemos, e é especialmente esta piedade para com o Redentor, que se manifestou de tantas formas: piedade que, como auspício de tempos melhores estamos para entregar em herança, se Deus quiser, ao século que está para nascer. Mas como se trata de coisas que podemos esperar somente pela graça divina, unidos no zelo comum e na oração, suplicamos a Deus onipotente queira dobrar-se à misericórdia. Não permita que pereçam aqueles que ele próprio libertou, com a efusão de seu sangue. Olhe propício para este século que, é verdade, muito pecou, mas também muito sofreu em expiação dos seus erros; e, abraçando amorosamente os homens de todas as nações e de toda raça, lembre-se da sua palavra: “E eu, quando for elevado da terra, atrairei tudo a mim” (Jo 12,32)Como auspício dos favores divinos, e como expressão da nossa benevolência paterna, concedemos, de todo o coração no Senhor, a bênção apostólica, a vós, veneráveis irmãos, ao clero e ao vosso povo.
Roma, junto a São Pedro, 1º de novembro de 1.900
LEÃO PP. XIII
Anexo
– Significado de:
- Tametsi Futura = lat. Ainda que se trate de coisas futuras.
- imperituro = adj (im+lat perituru) Que não pode perecer.
- quirógrafo - s.m. Escrito de próprio punho. Diploma com a competente assinatura. Breve do papa, não publicado nem divulgado. Antigo documento, em geral apenas assinado por uma das partes interessadas.
- Tametsi Futura = lat. Ainda que se trate de coisas futuras.
- imperituro = adj (im+lat perituru) Que não pode perecer.
- quirógrafo - s.m. Escrito de próprio punho. Diploma com a competente assinatura. Breve do papa, não publicado nem divulgado. Antigo documento, em geral apenas assinado por uma das partes interessadas.
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